Opinião
Da violência doméstica à inconstitucionalidade e a consagração da poligamia no direito moçambicano
É doutrina recorrente que um sistema jurídico não deve ser compreendido de forma fraccionada ou isolada. De tal sorte que a hermenêutica na família de Direito Romano- Germânico consagra largamente a interpretação sistémica das normas, para lá da literal
É na bitola da interpretação sistémica, feita à volta de um dado sistema jurídico, que questiono algumas possíveis nuances no instituto jurídico da #violência doméstica – mal que graça sobremaneira as sociedades contemporâneas e obriga à que as comunidades encontrem respostas assertivas para o seu combate, ainda que com a opinião de muito haver por fazer, pois muito parece fazer-se no campo normativo, às vezes de forma estonteante e perigosa para as próprias comunidades jurídicas, do que no campo educacional.
Em #Moçambique, o regime jurídico contra a violência doméstica, a rapidez na sua tramitação e a utópica valia da mesma, tem arrancado sentidos elogios de uma série de autores e actores – um dos fins com o qual não se compadece o direito, o de ser aplaudido, pelo perigoso risco de comprometer os que a doutrina dominante tem eleito, os da certeza, segurança e justiça.
Certo da diversidade de posições e paixões que esta opinião pode suscitar, porque falível, presumo ser importante ter em mente que é infeliz o Direito por não poder prever tudo, dada a dinâmica da vida social e a limitação do próprio homem. Daí a interpretação sistémica poder desempenhar um papel crucial!
Indo ao núcleo da reflexão, a violência doméstica, extraí-se da lei penal, em vigor, em Moçambique, no nº 1 do art. 245, que: Aquele que voluntariamente causar qualquer dano físico ao cônjuge ou ex. cônjuge, pessoa com quem viva como tal, parceiros ou ex. parceiras, namorados ou ex. namorados e familiares é punido com pena de prisão de um a seis meses e multa correspondente.
Ora, a aludida norma, com o “mérito” de punir a violência doméstica, ta qual, pecará pela extensão de “sujeitos” abrangidos por ela. Isto porque, se tivermos como ponto de partida o sentido jurídico de #família, como condição sine qua non, cairemos no ridículo de ver subvertido esse sentido, que nos é ensinado pelo Direito Civil, assim como de ver comprometida a ideia de monogamia aceite e postulada pelo mesmo ramo de Direito.
Tal porque, em abono da verdade, em Moçambique, um homem ou mulher só podem contrair um matrimónio a cada vez, ainda que o legislador ordinário tenha optado pela despenalização da poligamia. Por outra banda, por exemplo, não há memória da consagração jurídica de deveres de namorados, que à luz da supra citada lei podem cair na alçada da violência doméstica. Assim como, não fará sentido que um(a) “polígamo(a)”, mormente fora da relação estável, de casamento ou de união de facto, possa ser condenado por prática de algum ilícito de violência doméstica, se não das ofensas, injúria e, ou calúnia que tiver causado. Dado que a defesa do contrário pode levar-nos a cair na tentação da consagração tácita da poligamia na ordem jurídica moçambicana (ainda que discutível em certas correntes, pelos valores culturais e religiosos do povo moçambicano)
No mesmo sentido, de preocupação dogmática, há um outro risco, o de estarmos há muito a incorrer em inconstitucionalidades no mesmo campo, o da violência doméstica. Pois, à luz nº 3 do art. 34 da #Lei 29/2009 de 29 de Setembro, os recursos interpostos em sede de um processo de violência doméstica, onde há cominações criminais, têm efeito devolutivo. Em palavras simples, se um sujeito for condenado a prisão, substituída por multa ou não, ainda que interponha recurso, poderá ver executada tal sentença, conforme os casos. Ora, bolas, tratando-se de penas de reclusão, parece mister que se observem os princípios do art. 56 e seguintes da #Constituição da República de Moçambique (CRM), em concreto na parte que se refere a prisão preventiva, se for o caso, e a observância do caso julgado, para que se determine, necessariamente, a aplicabilidade ou não de uma cominação penal.
Estou, contudo, certo que em resposta à esta opinião pode-se convocar a imperativa necessidade de quem julga o dever fazer, principalmente quando haja norma para tal, mas estou mais certo que ele, o julgador, está obrigado, se entender e compreender o sistema para que foi talhado, a recusar aplicar uma norma que possa ofender o sistema jurídico, mais não seja pelo que reza o art. 214 da CRM.
Dito isto, parece haver necessidade de um profunda reflexão à volta da norma sobre violência doméstica, pelos riscos de o seu fim poder ser subvertido pelas consequências que possam decorrer da sua cega aplicabilidade, mesmo que se clame pelo senso de justiça. Nesta reflexão, não andará impune o legislador, com elevada obrigação de legislar de acordo com a lei e o sistema jurídico.
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