Opinião

Moçambique no Relatório do Desenvolvimento Humano 2019

Análise a partir dos Estudos Culturais.

Foi lançado recentemente o Relatório de Desenvolvimento Humano 2019, que entre muitos elementos apresenta o ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com Moçambique ocupando o 180º lugar entre 189 países analisados. Essa posição tem sido objecto de debate na esfera pública nacional e é sob essa luz que, por meio dessa breve reflexão, pretendemos fazer uma análise contextual baseada na teoria pós-colonial (dos Estudos Culturais).

A perspectiva pós-colonial, de acordo com McLaren (1993: 14), surge em um contexto em que a organização social das lutas discursivas privilegiou novas formas de dominar e, portanto, como um espaço para “novas liberdades e recriações das relações de poder”. De facto, alguns dizem que parte dos estudos internacionais de desenvolvimento se concentra em países economicamente bem-sucedidos e é usada como ferramenta para implementar as novas formas de dominação e controle dos países "em desenvolvimento".

Essas percepções, combinadas com a teoria pós-colonial, são fundamentais para analisar a posição de Moçambique no relatório da ONU. Contudo, como argumenta a teoria em questão, para analisar um fenômeno social multissetorial é necessário levar em consideração uma série de factores contextuais e, no contexto moçambicano, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) como indicador da qualidade de vida de uma determinada população já leva em consideração aspectos que certamente nos colocam em desvantagem, primeiro como país africano. Ora vejamos:

(a) Por Efeitos Do Colonialismo - Parte do subdesenvolvimento dos países africanos tem suas origens no colonialismo europeu, iniciado no século XV e intensificado no final do século XIX. Esse acto desumano levou recursos humanos e recursos naturais ativos do continente, além de atrasar o desenvolvimento estrutural e a organização política.

(b) Divisão Geográfica Arbitrária - A Conferência de Berlim dividiu arbitrariamente o território africano sem considerar as semelhanças culturais e sociais dos povos locais, já estabelecidas há séculos. Isso resultou em povos divididos, aliados separados e países sem coesão étnica. Este último factor explica, por exemplo, os constantes conflitos étnicos que dominaram o continente logo após a independência e que tiveram grandes influências no desenvolvimento local.

Segundo, como um País jovem com uma história complexa. Vamos ver agora:

a) Após a independência - um evento que provavelmente poderia minimizar alguns dos factores acima mas no contexto da construção nacional um grupo armado (financiado por estrangeiros), mais tarde conhecido como RENAMO - Resistência Nacional de Moçambique iniciou uma frente de reivindicações que desestabilizavam o país. Destruíram parte da infraestrutura básica: escolas, hospitais, pontes, etc. Saquearam remédios, mataram inocentes e atrasaram o desenvolvimento do país (que ainda estava em construção). De facto, mesmo após o Acordo Geral de Paz, descontente com sua implementação e quase 20 anos depois, o mesmo grupo novamente aterrorizou o país.

Esse factor afeta diretamente dois dos principais aspectos analisados ​​no cálculo dos Indicadores de Desenvolvimento Humano, que são “Educação” e “Longevidade”. Não se pode esperar educação consolidada em um país com consequências da guerra civil, com infraestrutura destruída. Embora esses elementos não tenham uma influência macro na desestabilização do país (como um todo), eles têm uma grande influência no cálculo do IDH, dada a imagem do país projetada para o mundo: um país em conflito. Problemas sociais subsequentes são previstos automaticamente, como problemas de saúde - o que afeta o aspecto da longevidade, pois quanto mais mortes ocorrem, menor a expectativa de vida.

b) A ideia de desenvolvimento no contexto moçambicano - Há críticas recentes sobre os critérios utilizados no cálculo do IDH, especialmente no aspecto “Renda vs. Qualidade de Vida”, porque aspectos locais que influenciam a melhoria da qualidade de vida das comunidades são ignorados. Esse é um conceito de desenvolvimento que leva em consideração factores mensuráveis ​​relacionados ao crescimento econômico (como renda média de cada morador, gasto monetário das famílias, etc.). O erro deste indicador é que ele não se encaixa no nosso contexto, porque em Moçambique ainda predomina, em algumas zonas, o sistema de comércio tradicional que não envolve valores monetários. É um facto termos comunidades que não têm dinheiro como o principal instrumento para atender às suas necessidades básicas.

Outro aspecto não menos relevante é que outras narrativas são frequentemente ignoradas sobre os factores reais que influenciam a baixa taxa de desenvolvimento humano nos países africanos. Nesse sentido, o foco está em elementos como ditadura, conflitos internos, corrupção, etc. Factores como invasão ocidental do continente, exploração brutal de recursos, desrespeito pelos factores climáticos na exploração de recursos e o papel ocidental no financiamento de conflitos armados em o continente - elementos que afetam diretamente a qualidade de vida - são deixados de lado na análise de uma nação. No entanto, os países que são "economicamente bem-sucedidos" em gozar da independência econômica adotam uma variedade de políticas protecionistas em benefício do desenvolvimento humano de seus concidadãos.

Esse paradoxo é explicado por outras narrativas como um mecanismo opressivo da ordem mundial para justificar a intervenção ocidental nos países africanos, ou por outro, vivendo a teoria pós-colonial é o que McLaren (1993) chama de "novas formas de dominação e controle" dos países pobres para justificar as intervenções maleáveis ​​do Ocidente. Essas novas formas de dominação, também conhecidas como "colonização moderna", são aplicadas através de vários mecanismos, exemplo: financiamento de conflitos internos; financiamento de movimentos sociais internos (desestabilizadores) rotulados como organizações da sociedade civil; construção imaginária de uma África falida, etc.

Apreciando o cenário moçambicano sob a ótica dos Estudos Culturais, verifica-se uma consonância de 3 factores: (i) Histórico-colonial que coloca o país susceptível ao baixo IDH, de acordo com parâmetros da ONU; (ii) Guerra civil (histórico-contextual), que tornou o país frágil e susceptível ao baixo IDH, também de acordo com parâmetros da ONU; Finalmente, (iii) Um factor local, que assume um conceito de desenvolvimento que vai além do crescimento econômico e considera aspectos locais incomensuráveis ​​como influenciadores da qualidade de vida local, o que contrasta com o factor de “renda” usado pelas Nações Unidas.

No entanto, este artigo não pretende negar o nível de pobreza em que o país se encontra, mas chamar a atenção para a necessidade de considerar outras narrativas e aspectos contextuais na interpretação dos relatórios de desenvolvimento internacional. No entanto, aceitar a posição do país no ranking do IDH implica: ignorar a diversidade conceitual do termo “Desenvolvimento”; assumir que crescimento econômico é sinônimo de desenvolvimento; supor que o dinheiro é o único instrumento comercial (neste caso, ignorando as formas tradicionais de comércio usadas no território nacional rural); Supor que o Ocidente conhece melhor nosso território e tem um dever moral e estrutural de nos informar sobre o atendimento de nossas necessidades básicas. Finalmente, está ignorando o alerta da teoria pós-colonial de que algumas organizações internacionais atuam como um reboque para os maiores potenciais do mundo e colocam seus interesses em primeiro plano, muitas vezes minando as nações mais frágeis com intervenção externa. Pelo contrário, aceitar o convite dos proponentes dessa teoria significa desconstruir parâmetros usados ​​pelo Ocidente para medir o desenvolvimento nos países africanos e aceitar que em nosso contexto o dinheiro não é o único elemento para satisfazer nossas necessidades básicas, pois produzimos e trocamos produtos e isso tem mais valor simbólico que as trocas monetárias e influencia a qualidade de vida local.

Menção e fontes de suporte:
PhD Eusébio A. P. Gwembe – Historiador
IANNI, Otávio (1998) Teorias da Globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
MCLAREN, P. (1993) “Pós-Modernismo, Pós-Colonialismo e Pedagogia”

Belarmino Lovane

Belarmino Lovane

Natural de Sussundenga, é pesquisador cultural, licenciado em Estudos Culturais pelo Instituto Superior de Artes e Cultura (ISArC). Mestrando em Desenvolvimento Regional em Osorno no Chile. Agente de comunicação da Plataforma Internacional de Dança Contemporânea – KINANI. Docente e Praticante no Centro de Estudos Regionais e Politicas Públicas de Chile. Tendo participado no destacado encontro de Desenvolvimento das Artes Performativas na Costa de Marfim. Foi Assistente de Comunicação do Projecto Xiquitsi. Foi membro da Organização dos Continuadores de Moçambique (OCM) e do Secretariado do Parlamento Infantil. Com formação intermédia em Jornalismo Comunitário, foi igualmente Presidente Assistente dos Estudantes do Instituto Superior de Artes e Cultura. Actualmente reside no Chile.