Opinião

FMI, Neocolonialismo e (Neo)libertação

Desde a sua criação em 1944, que o Fundo Monetário Internacional (FMI) [1] tem vindo a evoluir na sua intervenção, em função do contexto histórico e das idiossincrasias geopolíticas de cada época. Desde o fixar das regras da ordem económica internacional do pós-guerra, até aos atuais Programas de Ajustamento Estrutural (PAE) [2] nos países endividados, percorreu-se um longo caminho, em que o objetivo anunciado é o de manter a estabilidade financeira mundial.

Um traço comum ao longo da história do FMI é o facto de a influência dos países membros nas tomadas de decisão ser proporcional à sua contribuição para o Fundo, o que leva a que os países mais ricos tenham mais poder do que os mais pobres. O EUA, por exemplo, por via dessa regra tem poder de veto em quase todas grandes decisões [3], dando origem às queixas de que o FMI pode estar a ser usado como instrumento de intervenção apenas nos países em que as grandes potências mundiais possuam interesses estratégicos.

Esta situação aliada aos inúmeros exemplos de insucesso na intervenção do FMI, tem dado eco às vozes essencialmente provenientes da esquerda mais radical, segundo as quais, as Instituições de Bretton Woods [4] agem para proteger os interesses dos países mais ricos e do grande capital financeiro internacional, sendo contraproducentes para as economias intervencionadas. Essas vozes vão mais longe sugerindo que esse tipo de intervenção é intencionalmente perniciosa, com intuito de garantir que cada vez mais riqueza seja transferida dos países mais pobres, quer seja pela exportação de matérias-primas não processadas, quer seja pela abertura dos seus mercados aos produtos acabados provenientes dos países mais ricos e industrializados. Segundo essas vozes, o FMI não passa de um instrumento de neocolonialismo sobre a capa de uma missão altruísta inexistente.

Para avaliarmos o grau de veracidade desta teoria de conspiração, precisamos de entender melhor as linhas orientadoras dos PAE propostos pelo FMI na grande maioria dos países beneficiários de empréstimos. De uma forma resumida, essas linhas orientadoras assentam no seguinte:
• Redução dos gastos públicos (Austeridade fiscal);
• Privatização de empresas estatais, como fonte de captação de receitas para o Estado, mas também como meio de melhorar a eficiência dessas empresas;
• Liberalização do comércio, através da remoção de barreiras à importação;
• Desregulamentação dos mercados para encorajar a concorrência;
• Controle da inflação essencialmente através da política monetária, resultando no aumento das taxas de juro;

São medidas essencialmente contracionistas [5], cujo foco é claramente o de criar condições para que os países intervencionados possam gerar dinheiro suficiente para servir a sua dívida externa. E isto só pode acontecer à custa de cortes enormes nas áreas sociais como a Educação e Saúde, resultando na deterioração das condições de vida das populações. O FMI argumenta que este é um sacrifício necessário para compensar as políticas do passado que levaram ao sobre-endividamento, e para garantir que as gerações vindouras não sintam o peso da dívida.

A verdade é que para os PAE terem alguma hipótese de sucesso, é necessário, por um lado, que eles sejam aplicados com muito rigor e disciplina, e, por outro, que a população se disponha a pagar, durante largos períodos de tempo, por erros que não são da sua responsabilidade. Infelizmente, são poucos os casos em que esses dois fatores se verificaram em simultâneo. Geralmente, ou não existe por parte dos Governos, o tal rigor e disciplina, ou, quando existe, são as populações que acabam exprimindo o seu desapontamento através de revoltas e rebeliões. Em qualquer dos casos, os PAE acabam sendo abandonados, a meio caminho.

Obviamente que a solução ideal para este aparente círculo vicioso seria a de nunca se chegar à tal situação de sobre-endividamento que nos obrigue a recorrer ao FMI. Isto implica boa governação e perspicácia para não se se gastar mais do que se pode, mesmo quando as tentações que nos empurrem a fazê-lo sejam muitas. Infelizmente, essa perspicácia não existiu em Moçambique e em muitos outros países, pelo que a queda na armadilha da dívida tornou-se uma realidade inevitável, para a qual é necessário encontrar uma saída pragmática.

É verdade que estão em curso lutas para que haja um perdão de dívida aos países mais pobres, sob a alegação de que o endividamento é fictício e foi já pago pela exploração ocorrida a esses países durante séculos. Essas lutas são, no entanto, longas e de resultado incerto, permanecendo a necessidade de encontrar uma saída pragmática para o problema atual. As Instituições alternativas ao FMI para providenciar apoio financeiro aos países sobre-endividados, como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), anteriormente referido como Banco de Desenvolvimento do BRICS [6], têm ainda um raio de ação bastante limitado, e nada nos garante que não tenham, elas também, a sua própria agenda oculta.

No caso do nosso País, mesmo que acreditemos que o FMI tem uma agenda neocolonialista, a solução imediata reside em começarmos por reconhecer, por um lado, que temos culpas próprias neste processo, e, por outro, que não existe nesta altura alternativa nenhuma aos PAE. O nosso país, terá que se submeter a austeridade e às políticas contracionistas desses programas. Mas ao fazer isso, tem que iniciar, em paralelo, uma luta de libertação, não com a força das armas, mas com a força do trabalho, da seriedade, do sacrifício, da competência, da eficiência, da perserverança. Estes são alguns dos valores sob os quais deve assentar a (neo)libertação.

Essa reformulação de valores, valências e mentalidades, embora extensiva a todas parcelas da nossa sociedade, desde o mais pequeno operário, ao maior empresário, tem que ser liderada pela Governação. Precisamos de líderes que dêm o exemplo em termos de não gastarem mais do que podem e em termos de minimizarem o desperdício de recursos.

Isto implica uma rutura com o passado, a assunção de que temos que iniciar um novo caminho, no sentido de permitir, não só melhorias na qualidade de governação, mas também no sentido de refrear os ânimos de uma população, que ao ver uma Governação diferente, sem gastos supérfluos e sem vidas luxuosas, poderá ficar menos propensa a revoltas e rebeliões. O Governo Tanzaniano é atualmente um bom exemplo dessa atitude.

Se conseguirmos romper com um passado repleto de erros, se aproveitarmos a parte positiva das políticas contracionistas impostas pelo FMI, se conseguirmos enveredar pela via do trabalho, da seriedade, da competência, da transparência e da eficiência, estaremos em condições de suavizar a austeridade que se avizinha e, sobretudo, estaremos em condições de garantir que nunca mais cairemos na armadilha da dívida, nem nunca mais nos colocaremos à mercê do suposto neocolonialismo do FMI.

É essa a luta que temos que travar para nos (neo)libertarmos! É esse o verdadeiro desafio que temos que enfrentar: uma luta contra nós próprios, mais do que contra qualquer inimigo externo. Uma luta que envolve alterações radicais nas nossas mentalidades, em todas parcelas da sociedade, de forma a que não haja lugar para a complacência e para o laxismo. Os governantes devem dar o exemplo, mas a mudança tem que ser em toda a Sociedade. [7]


Pemba, Novembro de 2016


Notas do Editor:
[1] Para aceder a página oficial clique, aqui. Para mais informações clique, aqui.
[2] Os programas de ajustamento estrutural (PAE) consistem em empréstimos concedidos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial (BM) a países que passaram por crises económicas. As duas Instituições de Bretton Woods exigem que os países mutuários implementem determinadas políticas para obter novos empréstimos (ou taxas de juros mais baixas as existentes). As cláusulas de condicionalidade associadas aos empréstimos foram criticadas devido aos seus efeitos sobre o sector social. Informação traduzida e retirada aqui.
[3] Os EUA tem 17,08% do poder de voto em comparação com os 6,13% e 5,99% do Japão e Alemanha, respetivamente.
[4] As instituições de Bretton Woods são o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Foram criados numa reunião de 43 países em Bretton Woods, New Hampshire, EUA em julho de 1944. O objetivo era ajudar a reconstruir a economia destruída do pós-guerra e promover a cooperação econômica internacional. O acordo original de Bretton Woods também incluiu planos para uma Organização Internacional do Comércio (OIC), mas estes ficaram adormecidos até que a Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada no início dos anos 90. Informação traduzida e retirada aqui.
[5] Em termos económicos, a palavra “contracionista” significa o oposto de expansionista e alguns economistas defendem que políticas contracionistas podem ser uma forma de tirar Moçambique da recessão.
[6] Para aceder a página oficial, aqui.
[7] Para mais noticias sobre este tema na Folha de Maputo, aqui.

Assif Osman

Assif Osman

Nasceu em Janeiro de 1977 e é natural de Pemba, cidade onde passou grande parte da sua infância e completando o Ensino Primário e Secundário. Foi em Maputo que concluiu o ensino Pré-universitário e licenciou-se em Gestão de Empresas pela Universidade Eduardo Mondlane (UEM) em 1999. Trabalhou no sector bancário por dois anos, até regressar a Pemba, em 1999, para gerir os negócios da família. Completou o MBA com mérito na IE Business School em 2011. Passou consecutivamente nos três exames para o Chartered Financial Analyst (CFA). Atualmente é CEO do Grupo Osman Yacob, investindo no ramo do comércio, indústria e imobiliária.