Opinião

O pesadelo que me segue por ter comido “Nguinguiaya ya Mulumuzana” (1)

Esta de comer “Nguinguiaya ya mulumuzana” parece mais um conto para fazer, como sói dizer-se, para “adormecer o boi”, que na verdade é um facto que aconteceu comigo, anos depois de ter começado a viver em Maputo.

Foi uma história triste, pelo sofrimento que está depositado em mim e, provavelmente, no meu amigo, para comigo, e a esposa, para com ele e comigo. Tudo está apontado em mim. É um sofrimento à ficha tripla. Para não deixar muitos “pegas” pelo caminho, vou tentar ser directo ao assunto, como fiz com nguinguiaya _moela de galinha_ de sua majestade que comi e, por conseguinte, destrui, inocentemente, uma família, simplesmente, pela gula de não deixar o dono da casa comer sozinho a peça que simboliza o mulumuzana (dono da casa).

Estava eu em pleno segundo ano da universidade. Uma fase que cada um de nós que por lá passou, não esquece, uma fase da vida em que falta de tudo um pouco. Até tempo escasseia. Há sempre um professor a entulhar trabalhos, há uma ficha por ler e há sempre um amigo que já tem uma parte da vida resolvida, mas precisa do certificado para alistar no clube dos doutores. Meu amigo era um dos que dizia que apenas estava a estudar só para ter certificado.

O meu amigo já trabalhava. Tinha até computador e internet em casa. A esposa era doméstica. Mais tempo ficava em casa. O meu amigo não tinha tempo de fazer os trabalhos dados pelos docentes. Eu, sem laptop, nem internet, decidimos trabalhar juntos, do jeito “uma mão, lava a outra”.

De um lado, ele disponibilizava a casa dele, para eu puder fazer os trabalhos para ambos (deles e os meus). A esposa, simpática que era, servia-me comida e de tudo um pouco, para eu ter calorias para estudar. Repetia-se várias vezes, obviamente, com consentimento do meu colega. Sempre que quisesse “googlar”, fazia questão de informar meu amigo até que um dia decidiu informar-me que sempre a casa estava à disposição.

Um dia desses, ele decide que tínhamos que passar um sábado juntos. Foi uma maravilha ter-me convivido. Na altura, duas cervejas eram suficientes para satisfazerem o meu ego, comparativamente a agora que preciso mesmo de uma certa quantia. A verdadeira escola de vida ainda estava para vir.

Dizer que caracol, aquela de concha, é um bom prato, de primeira, em certas paradas, a exemplo Cabo Delegado, muitos podem não acreditar. Informar que uma boa espetada de rato selvagem, aquele pequenino roedor, é um bom petisco para as bandas de Manica e Tete, e porque não em Sofala, pode ser nojento. Gato, aquele gato mesmo, assemelha-se a carne de coelho em alguns interiores de Inhambane, e noutras regiões. Até pode ser piada. Já não digo dos cães vadios que desapareceram em algumas zonas, onde houve alguma intervenção dos chineses e vietnamitas, da fibra óptica.

Tive que fugir um pouco de “nguinguiaya”, para de certa forma desanuviar a tenção que já estava batendo em mim. Sucede, porém, que tudo quanto aconteceu, que vão saber a seguir, foi por não ter sabido que, nalgumas culturas, carne não se salga, mas sim se adoça. Nesse adoçar e salgar, um ou outro pode achar ridículo, mas estamos todos neste mundo.

Voltando ao que eu era útil para o meu amigo, acontece que num dos sábados, ou seja, no sábado em que tudo hibernou, tinha combinado com o meu amigo, para chegar à casa dele, para alinhar o trabalho dele de Estatística. Modéstia à parte, eu era bom nessa cadeira. Quando comecei a fazer o trabalho daquele sábado, o meu amigo estava ausente. Estava eu e a esposa. Quando fazia o trabalho, descontraia-me com as piadinhas dela. Do tipo, nunca tinha visto o marido a ler algo de escola, questionando se eu é que fazia tudo? Sem dar-lhe qualquer resposta, limitava-me a olhar para ela. A esposa do meu amigo estava na cozinha e eu do lado da sala.

Gritaria para aqui e gritaria por lá. Minutos depois, o meu amigo liga para mim a informar que estava a chegar. Mas antes a esposa, naqueles servicinhos, já tinha adiantado a mim as partes mais comprometedoras de um frango assado. A moela e as patinhas.

Quando o meu amigo chegou eu já tinha limpado a boca, como se nada tivesse comido. Ele tinha uma fome de leão. Nem mais, foi directo à mesa e disse-me: Mutenda, senta-te nesta cadeira. Sentei-me e começamos pela reza. A esposa, como sempre, ficava do lado da cozinha. Todo o frango tinha sido servido para o mulumuzana e à visita – neste caso, eu.

Ele começou por dizer que os hóspedes são os primeiros a servir. Nem mais. Não hesitei, porque doutra vez foi assim. Coloquei para o meu prato, uma parte da asa, ligada ao pescoço, com um pouco de molho de tomate, obviamente, com um naco de xima.

Depois de servir, o meu amigo fez questão de perguntar à esposa, qual era o paradeiro de nguinguiaya. Perguntou pela quarta vez e a esposa continuou no silêncio. Eu, como nada, nada mesmo sabia do significado cultural de nguinguiaya em Chibuto, província de Gaza, onde o meu amigo é natural, vi nele um homem diminuído à sua insignificância. Estávamos no caso de “madoda” e que para prisão preventiva, a esposa foi lhe obrigada a arrumar as malas, de imediato, para voltar a ser “re-layada” – espécie de reeducação em casa dos pais.

Após esta decisão, o meu amigo convidou-me a sair da casa dele, de imediato e simplesmente teceu a seguinte frase: “comeste minha nguinguiaya, sejam felizes!”, desejou-me, o meu amigo. (Continua).

Mendes Mutenda

Mendes Mutenda

É jornalista moçambicano e natural de Sussundenga, na província de Manica. Foi formado pelas Escolas de Jornalismo (Médio Profissional) e Superior de Jornalismo. Há mais de 15 anos que trabalha na Comunicação Social, tendo passado pela rádio e televisão como apresentador de conteúdos informativos. Para além, de desempenhar funções na plataforma informativa Folha de Maputo é Docente-estagiário da Escola Superior de Jornalismo e analista de assuntos sociopolíticos em Moçambique.